Lugar de mulher é onde ela quiser


Lugar de mulher é onde ela quiser
Uma análise espírita do feminismo

A perspectiva adotada por Allan Kardec em seu texto “A mulher tem alma?”, na Revista Espírita, de janeiro de 1866, é ousada para sua época e necessária ainda hoje, do ponto de vista social. Além disso, quanto à opinião espírita, esse texto será sempre basilar, em termos da discussão de gênero. Nossa proposta com esse artigo é apontar alguns caminhos acerca da relação Espiritismo e feminismo, partindo da premissa do texto citado, relacionando-o com relatos e vivências do mundo do século 21.

Por que feminismo?

Fala-se muito em empoderamento feminino e, alguns de nós, homens, veem a questão como “exagero” ou “revanchismo”. Mas pense com alteridade, coloque-se no lugar do outro: durante séculos e séculos (e infelizmente em vários níveis ainda hoje), o gênero feminino foi minimizado a objeto, seja de prazer, seja de serviço; durante diversas idades da história humana a mulher foi tida como incapaz, como mera reprodutora ou como coadjuvante da vida masculina, tendo como missão exclusiva ou ao menos principal, cuidar da casa e dos filhos.

Parto do princípio que toda minoria ou classe historicamente ultrajada, excluída, ao dizer-se desconfortável, deva ser ouvida. Ora, se fiz um comentário que, segundo uma mulher, soou machista, preciso reconsiderar, pelo simples fato de tê-la incomodado. Perceba que há diferença entre isso e a simples opinião que alguém emite sobre mim – ora, o que dizem de mim pode ou não ser verdade e preciso avaliar com lucidez se a observação merece atenção (ser reformulada) ou não. Mas se alguém se diz atingido, em sua integridade, preciso dar razão. E nesse caso pela carga cultural, histórica, que aquela pessoa ou grupo representam. Preciso respeitar um sentimento que mesmo causado por algo inconsciente, remonta às mais distantes práticas preconceituosas e excludentes que a sociedade já considerou um dia como normal.


Talvez por um exemplo me faça entender melhor: “fui a um casamento religioso em que noiva foi quem aguardou no altar, enquanto o noivo entrou ao som da marcha nupcial levado por sua mãe; muitas pessoas ficaram escandalizadas com a inovação e foi um burburinho só. A intenção do casal foi provocar a seguinte reflexão: você já pensou que essa coisa de o pai entregar sua filha no altar ao noivo é machismo?”..., ou seja, um homem, dono de uma mulher, entrega a sua posse ao novo mandatário do pedaço. Pode parecer um exagero, mas realmente o casamento vem com esse apelo; bastando lembrarmos que há pouco tempo pagava-se dote a quem desposasse sua filha, ainda com acréscimo dos custos das festividades, que, em geral, eram da família da noiva. Pense você como pensar, há que se reconhecer que há, sim, machismo embutido nessas práticas.

O fato é que o feminismo vem lutar por algo que deveria ser (ainda mais hoje) muito natural para todos nós – a igualdade dos gêneros – mas que ainda não o é. Trata-se de reconhecer direitos e expandi-los, quer seja no mercado de trabalho, quer na concepção de família. Como assevera Kardec, essa conquista de direitos precisa ser algo durável e legitimado e não um favor do homem:

“(...) sua libertação parcial é apenas resultado do desenvolvimento da urbanidade, do abrandamento dos costumes ou, se quiserem, de um sentimento mais exato da justiça; é uma espécie de concessão que lhes fazem, e é preciso que se diga que lhes regateiam o mais possível”.                                                                                                                       Allan Kardec – R.E., jan/1866.

O papel da mulher

O admirável em Kardec (dentre outras coisas) é a visão por antecipação, aquela capacidade de entrever o que ainda está por vir. Diz ele sobre a igualdade de posição social entre homens e mulheres:

“Notemos, de passagem, que se esta igualdade não passar de uma concessão do homem por condescendência, aquilo que ele der hoje pode ser retirado amanhã, e que tendo para si a força material, salvo algumas exceções individuais, em massa ele sempre levará vantagem. Ao passo que se essa igualdade estiver na Natureza, seu reconhecimento será o resultado do progresso e, uma vez reconhecido, será imprescritível”.                                                                Allan Kardec – R.E., jan/1866.

Não se trata, portanto, ou não se pode tratar somente de gerar compensações sociais ou ainda menos de “pagar” as injustiças de outrora, mas de reconhecer a natureza da igualdade entre os gêneros, de modo que as conquistas não sejam concessões feitas pelo homem num tabuleiro de equilíbrio de forças, mas a construção consciente de uma igualdade na melhor acepção desta palavra.

Por isso, diz-se muito bem que lugar de mulher é onde ela quiser, de modo que sua atuação na vida precisa ser fruto de seu livre-arbítrio e não imposições sociais ultrapassadas que acabam por desconsiderar importantes verdades claras como essa:

“Não existe, pois, diferença entre o homem e a mulher, senão no organismo material, que se aniquila com a morte do corpo; mas quanto ao Espírito, à alma, ao ser essencial, imperecível, ela não existe, porque não há duas espécies de almas. Assim o quis Deus em sua justiça, para todas as suas criaturas. Dando a todas um mesmo princípio, fundou a verdadeira igualdade. A desigualdade só existe temporariamente no grau de adiantamento; mas todas têm direito ao mesmo destino, ao qual cada uma chega por seu trabalho, porque Deus não favoreceu ninguém à custa dos outros”.                                                                                                                            Allan Kardec – R.E., jan/1866.

Alguém poderia estar imaginando a esta altura: mas e as funções? Não diferenciam homem e mulher definitivamente? Pensemos com Kardec e como Espíritos, deixando, portanto, de lado, a referência social passageira, para termos como condutora, a nossa natureza espiritual, verdadeira.

No mundo em que vivemos, é possível falar em separação radical de funções entre homem e mulher? Tirando a procriação e a amamentação, que outras tarefas devem ser exclusivamente das mulheres? E por quê? Nossas respostas (se tentarmos listar mais alguma coisa) serão sempre circunstanciais, culturais. Aliás, mesmo no campo da maternidade, nós, que conhecemos algo de reencarnação, podemos dizer que toda mulher nasceu para ser mãe? Claro que não! Planejamentos reencarnatórios os mais distintos se dão no mundo espiritual e nem sempre incluem a maternidade. No máximo, afirmamos com razão, que, por hora, só as mulheres podem ser mães na Terra. E até isso varia de planeta para planeta, pois pelo pouco que conhecemos de Júpiter, por exemplo, um mundo superior, lá a infância deixou de ser necessidade como conhecemos e, portanto, a maternidade perdeu o peso que a ela damos. Não há funções circunscritas e delimitadas entre os gênero, pois não existem gêneros como veremos a seguir.

O Espírito não tem sexo

“Teria Deus criado almas masculinas e femininas fazendo estas inferiores àquelas? Eis toda a questão. Se assim fosse, a inferioridade da mulher estaria nos decretos divinos e nenhuma lei humana poderá transgredi-los. Tê-las-ia, ao contrário, criado iguais e semelhantes?
Nesse caso, as desigualdades baseadas na ignorância e na força bruta desaparecerão com o progresso e o reinado da justiça.
As almas ou Espíritos não têm sexo. As afeições que os unem nada têm de carnal e, por isto mesmo, são mais duráveis, porque fundadas numa simpatia real e não são subordinadas às vicissitudes da matéria.
Os sexos só existem no organismo; são necessários à reprodução dos seres materiais. Mas os Espíritos sendo criação de Deus não se reproduzem uns pelos outros, razão pela qual os sexos seriam inúteis no mundo espiritual.”                                               
Allan Kardec – R.E., jan/1866.

Ao tratar deste assunto, citamos primeiramente Kardec, por sua importância conceitual, mas precisamos rememorar Léon Denis, em O Grande Enigma, que diz que só tem existência real o que é permanente! Como fica bem claro acima, a questão da sexualidade tem uma existência circunscrita e localizada no mundo material, sem falar, em alma feminina ou masculina, se não por uma licença poética, porque essa será nada mais do que a apresentação temporária de um Espírito que se sente mais nesta ou naquela polaridade, já que com o passar do tempo, como diz Kardec no texto estudado, pelos processos de adiantamento e desmaterialização, o Espírito perde completamente a influência da matéria e “o caráter dos sexos se apaga”.

Ora, se não existem gêneros verdadeiramente, onde o motivo real para uma inferioridade imputada à mulher, se não no materialismo? Isso mesmo, uma das conclusões do codificador é que só na visão materialista pode ser permitida uma ideia tão rasa quanto da mulher, que dali só é retirada pelo favor do homem. Mas ao Espiritismo estava reservada outra missão superior: declarar que homens e mulheres são filhos de Deus, em experiências diversas, somente na aparência, e que por isso:

Com a Doutrina Espírita, a igualdade da mulher não é mais uma simples teoria especulativa; já não é uma concessão da força à fraqueza, mas um direito fundado nas próprias leis da Natureza. Dando a conhecer essas leis, o Espiritismo abre a era da emancipação legal da mulher, como abre a da igualdade e da fraternidade.                                                                     Allan Kardec – R.E., jan/1866.

Empoderamento no meio espírita

Léon Denis, em No Invisível, acrescenta que “o moderno espiritualismo restitui à mulher seu verdadeiro lugar na obra social, indicando-lhe a sublime função que lhe cabe desempenhar na educação e no adiantamento da humanidade. Faz mais: reintegra-se em sua missão de mediadora predestinada, verdadeiro traço de união que liga as sociedades”. E para que isso se cumpra, e nossas linhas comecem a se encerrar, precisamos pensar se no meio espírita temos treinado bem com o dever de casa.

Percebemos na frequência às Casas Espíritas um predomínio de mulheres, às vezes, leve e noutras oportunidades, bem intenso, variando de região para região. Mas será que esse predomínio numérico se consubstancia em equilíbrio das atividades realizadas? Temos visto, sem quaisquer estatísticas, apenas aferições superficiais, que esse domínio nem sempre está materializado em funções. São, em menor número, as dirigentes de Centros Espíritas, as conferencistas espíritas, e mesmo, as representantes de federativas e órgãos administrativos. Significaria isso, em algum nível, certo classicismo machista? A essa pergunta não responderemos, por nos faltar a resposta. Mas compartilhamos a questão para que fique nossa reflexão. Por que se houver algo parecido em nossos corações, mesmo que guindados por questões culturais às vezes inconscientes, vale, por tudo que vimos reconsiderar, não?!

Palavras finais

Que as nossas práticas se transformem, na busca constante por mais coerência entre aquilo que professamos e o que (por força das coisas) ainda somos. Que não vá aqui nenhuma carga de culpa ou chantagem, pois a Doutrina está aqui para nos consolar, instruir, fazer amar. É nesse campo que entendemos que a máxima ainda tão desafiadora do Cristo permanece atual e legítima: “Ama ao teu próximo; ama como eu vos amei”; porque se somos irmãos, precisamos lutar pelos direitos naturais de todos, pois não há diferença entre “eu” e “ele”; “ele” e “ela; “nós” e “eles” A diferença é na aparência, para quê, de prova em prova, alcancemos a felicidade da igualdade:

“É com o mesmo objetivo que os Espíritos encarnam nos diferentes sexos; aquele que foi homem poderá renascer mulher, e aquele que foi mulher poderá nascer homem, a fim de realizar os deveres de cada uma dessas posições, e sofrer-lhes as provas.”
Allan Kardec – R.E., jan/1866.



Autor: Saulo Monteiro

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